À Francesa #6 - Tudo Vale a Pena
5 dias de Festival de Angoulême, conversa com gente incrível e um diário em quadrinhos.
Oiê! Essa é a primeira Newsletter depois do festival de Angoulême. Se você já me acompanha por aqui, sabe que foi um negócio gigantesco e importantíssimo. Essa edição tem + conteúdo e está gostosa de ler (como sempre). Abração <3
No último dia do festival de Angoulême, eu e Mário (quadrinista brasileiro, organizador da Poc Con e publicado na França pela iLatina) saímos da barraca Nouveau monde, com estandes de editoras independentes francesas e internacionais, e fomos para o Souris Vert.
Depois das 19h, quando os estandes fecham, esse bar, cujo letreiro tem um rato verde fumando um cachimbinho muito suspeito, lota de quadrinistas e visitantes. Quando me chamam, tomo sempre a mesma coisa: uma cerveja de cereja com duendes gordinhos e simpáticos no rótulo.
Confesso que saí mais cedo do que gostaria - estava desidratada depois de um dia inteiro perambulando pela cidade sem beber 1ml de água e, por estar um frio de 1°C lá fora, os donos do bar aumentaram o aquecedor dentro do bar. Quando me ofereceram um copo suadinho de cerveja, sem querer eu virei tudo de uma vez. Meia hora depois, estava completamente Fernanda Torres no Altas Horas.
O meu instinto foi pegar a minha bolsa (com meu cartão, meu crachá de acesso à Maison des Auteurs, minha chave de casa…) e me certificar de que não tinha esquecido meu bem mais precioso: meu diário em quadrinhos.
Essa é uma newsletter quinzenal e gratuita. Se você tem fome de conhecimento ou adora uma fofoquinha, assine meu clube de apoiadores para saber tim tim por tim tim do que rolou em Angoulême: catarse.me/cafezinho
O Bloqueio Criativo
Logo quando cheguei aqui, dia 16 de Dezembro, tive 5 dias extremamente produtivos. Fiz rascunhos e tracei 5 páginas completas, enviei as minhas informações para a exposição que rolaria durante o festival, fiz storyboards… depois disso, fui pega de surpresa: caí num bloqueio criativo gigantesco.
Já entre o natal e o ano novo, sentei para tomar café da manhã com a Yi Yang, minha colega de quarto e artista incrível. Era uma manhã quietinha e ensolarada — um intervalo gostoso no frio implacável que faz nessa época. Tinha acabado de passar um cafezinho e peguei umas bolachinhas com gotas de chocolate. Para colocar tudo na mesa, tive que desviar das dezenas de canetinhas e canetões coloridos que ela tinha esparramado enquanto desenhava. Verde-água, laranja, rosa neon…
Ela estava com as pernas dobradas em cima do assento da cadeira, o sketchbook apoiado nos joelhos. O cigarro no cantinho da boca estava esquecido, já que ela focava em um desenho lindo e colorido que estava fazendo da vista da nossa janela.
Vendo aquela cena, lembrei de um caderninho que tinha comprado logo antes da viagem, na intenção de desenhar no avião. Sentei na cadeirinha dura de madeira e usei algumas canetas dela para rabiscar… quinze minutos depois, uma página de quadrinhos saiu. Um diário daquela manhã agradável e calma.
Que delícia foi desenhar sem preocupações. O que importava era a sensação de criar e não o prazo, o número de curtidas, como seria a divulgação desse livro…
Lembrei que essas besteirinhas me levaram a fazer quadrinhos em primeiro lugar: usar a nona arte para pensar a minha vida e, se possível, fazer as pessoas entenderem o que se passa no meu coraçãozinho. Eu sempre fui muito, muito, muito sensível.
De Onde Vêm?
Sábado (30) foi dia dos bate-papos. Acordei cedo, tomei um banho e separei uma roupa bem bonita. Peguei minha mochila e subi a rua de casa para chegar ao centro de Angoulême, onde a tenda Nouveau Monde fica. Atravessei uma multidão abarrotada nos corredores que já eram largos, contornei os espaços até chegar em um palco-coreto em frente à outra entrada oficial. 13h30 era hora de prestigiar o Luckas Iohanathan, que estava na seleção oficial do evento com o Como Pedra. Em uma entrevista com uma francesa animadíssima (traduzida em tempo real pelo quadrinista gente fina André Valente, que conheci em uma dédicace), ela perguntou sobre o silêncio do livro.
Confesso que o silêncio na obra não foi a primeira coisa que eu percebi. Me ative muito mais às passagens da Bíblia e como essa ideia de que “os mansos herdarão a terra” (Mateus 5:5 lido pelo Cristo na hora de procurar um emprego) se relacionaria com o resto do livro. Mas ouvindo a resposta dele, comecei a perceber como isso permeava a obra: o traço é de uma simplicidade imensa, com três cores incluindo o branco da página. E os diálogos, segundo o Luckas, só surgem quando são estritamente necessários. Diz ele que é porque ele é assim: só fala o que precisa falar quando tem que falar.
De lá, fui direto para a Masterclass com a Posy Simmonds, quadrinista inglesa vencedora do Grand Prix do Festival de Angoulême em 2024 e uma das homenageadas dessa edição, com uma exposição linda. Conheci o trabalho dela aqui na cidade e fiquei super intrigada. As obras dela são uma mistura de romance com quadrinhos - com parágrafos inteiros narrando uma história e as artes entrando para apoiar a narrativa. Olha que legal:
Ali não tem silêncio. Tem cor, tem o grão do lápis no papel, tem aquarela, tem cores, tem parágrafos e letras capitalizadas em negrito. E os dois trabalhos funcionam perfeitamente.
Não sei te dizer quantas pessoas conheci nesse evento. Quantos quadrinhos li, folheei, com quantos artistas tive uma conversa breve e dividi (mais uma) cerveja. Não saberia nem te dizer quais foram os caminhos de vida mais comuns que levaram eles a fazer quadrinhos.
Tem gente que se formou em artes, arquitetura, jornalismo, engenharia, quem não fez faculdade. Tem gente que desenhava maravilhosamente bem desde novinho, gente que aprendeu depois e quem faz o seu freestyle. Tem quem esteja no enésimo quadrinho publicado, tem quem ainda esteja fazendo seu primeiro projeto. E todos os caminhos os trouxeram para que nos encontrássemos aqui.
Pode ser um amigo, um pastor, um fetiche, uma professora, uma perda na família, um lápis de cor específico, um filme, um desenho, um sonho. Tudo pode ser motivo para fazer as obras expostas nos pavilhões enormes e lotados do Festival. Tudo vale a pena.
Fruir a vida é o único caminho com resultado garantido. Que maravilha!
Em Exposição
É refrescante entrar em uma exposição, ver que as artistas são todas mulheres e não ter nenhuma plaquinha, textinho ou um painel rosa enorme dizendo que essas são as guerreiras mulheres que estão galgando seu espaço em um mercado dominado por homens. Vamos, garotas!
No primeiro dia de evento, dia 29, fui com a minha colega Paula na exposição Constellation Graphique, com jovens quadrinistas avant-garde espanholas.
Foi super legal ver esses quadrinhos mais viajados, abstratos… minha formação como profissional e leitora é muito baseada no texto - deixar a história mostre ao invés de explicar é sempre meu maior desafio.
Mais tarde pude presenciar uma conversa entre Annick Cojean (Les Mémories de la Shoah) e Stéphane Marchetti (Sur Le Front de Corée), ambos com reportagens adaptadas para histórias em quadrinhos, publicadas pela Dupuis. Não é necessariamente jornalismo em quadrinhos, já que há um certo elemento de ficção adicionado durante a adaptação, mas uma grande parte (e o essencial, eu diria) vem do trabalho jornalístico. (+ sobre isso no meu catar.se)
Exposta na França, bébé.
Dia 30 também foi a inauguração da exposição com meu trabalho em Angoulême!
Eu e outros vários artistas em residência expusemos nossos trabalhos no coração do festival a convite da Maison des Auteurs. Felizmente tinha muita gente lá dentro. Eu não consegui tirar foto de todo mundo. Vocês vão ter que acreditar em mim.
O que eu tenho são fotos dos meus colegas brasileiros que vieram me ver: o Mário, do começo da newsletter e o Anderson Shon, poeta e roteirista do Estados Unidos da África, que acabou de ganhar um HQMIX.
Um abração também para o brasileiro gente finíssima que estava no festival e foi para a exposição só pra ver o meu trabalho (!!!!). Eu fiquei muito emocionada — tão emocionada que esqueci de tirar foto. Douglas, você é foda.
E agora, Cecilia?
Você ficou com vontade de saber ainda mais do evento? Preparei uma newsletter com detalhes sobre as exposições e bate-papos que participei, além de uma lista detalhada das HQs que comprei por aqui. Para isso, você tem duas opções: assinar da minha newsletter pelo Substack ou virar apoiador do catar.se! Ambos recebem a Newsletter Carta de Amor, uma carta semanal para os mais chegados.
Agora é hora de continuar trabalhando. Falta um mês para eu ir embora. Estou triste porque o tempo passou muito rápido - quero usar essa sensação para aproveitar ao máximo o tempo que tenho aqui.
Por enquanto é só. Te vejo logo logo!
À Bientôt,
Cecilia
Eu poquei de rir na página do sorvete KKKKK genial
VOCÊ MERECE O MUNDOO